quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Pobres

    Eu não tenho nada contra pobres, até tenho amigos que são. O que eu não gosto é de os ver a contar os tostões para pagar a conta do supermercado, não gosto que estejam sempre a falar de dinheiro, sempre a pensar como vão manter um teto sobre a cabeça e como vão chegar ao final do mês sem passar fome. Convenhamos que às vezes são pessoas muito desagradáveis porque só sabem falar em dinheiro, desde janeiro até dezembro, e nunca estão satisfeitos.
    Em janeiro são os aumentos, que têm de ser maiores que a inflação porque aqui del-rei que o que conta é o salário real. Não basta serem pobres e ainda têm de perceber de finanças. Em abril já andam malucos para saber quanto vão receber de IRS: em princípio não vão receber nada porque quem não ganha o suficiente para fazer descontos para IRS também não recebe reembolso. Pensei que percebiam de finanças. Em junho querem receber o subsídio de férias, é outra coisa que não se percebe. Para quê tanta coisa com o subsídio de férias se depois passam as férias em casa? Em setembro andam de novo aflitos com o custo dos manuais escolares, uma loucura sem igual, qualquer dia querem outro subsídio em setembro porque isto é malta que pensa que o patrão tem obrigação de sustentar os filhos daquela malta toda. É que não sei se já perceberam, mas em Portugal há mesmo muitos pobres. Não fossem os apoios sociais e quase 50% da população seria pobre. No final do ano lá estão os pobres preocupados com o subsídio de natal, mas pronto, neste caso até parece que celebram o natal. Não sei se trocam prendas, mas parece que se reúnem para comer bacalhau com batatas, muito provavelmente fazem-no ao frio porque, diz-se, 20% dos portugueses não têm dinheiro para aquecer a casa. 

    Em janeiro do ano seguinte recomeça a choradeira dos aumentos, devem querer deixar o patrão pobre como eles.


quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Revolução Científica (versão oficial)

Na ciência acontece muitas vezes que os cientistas dizem: "Sabes, é um argumento muito bom; a minha posição está enganada”, e depois mudam de ideias e nunca mais se ouve aquela visão antiga deles. Fazem-no mesmo. Não acontece com frequência, porque os cientistas são humanos e a mudança às vezes é dolorosa. Mas acontece todos os dias. Não me lembro da última vez que algo assim aconteceu na política ou na religião.[1][Tradução livre]
 
    A astronomia deverá ter sido a primeira ciência a ser desenvolvida pela humanidade. Ela servia dois propósitos: permitir aos agricultores organizar as suas plantações e colheitas através de um calendário e estabelecer uma ligação entre os fenómenos celestiais e os fenómenos humanos (Rovelli, 2020, p. 28). Desta forma, durante a maior parte da História da Ciência, a astronomia e a astrologia andarão de mãos dadas. A necessidade de construir um calendário rigoroso perseguiu diversas civilizações da antiguidade: China, Babilónia ou Egito são apenas alguns exemplos. A partir dessa premissa, serão propostos numerosos modelos de descrição do movimento dos astros.
    Aristarco terá sido a primeira pessoa a defender, no século III a. C., que era o sol, e não a Terra, que estava no centro do sistema planetário. Também pensava que as estrelas eram sóis distantes (Sagan, 1980, p. 222). Anaximandro de Mileto, no século VI a. C., sustentava que os humanos provinham de outros animais cujos recém-nascidos conseguiam sobreviver sozinhos melhor que nós, e que os primeiros animais teriam sido os peixes (Sagan, 1980, p. 207). São apenas alguns exemplos de hipóteses lançadas na antiguidade e que hoje sabemos serem verdadeiras.
    Se hipóteses científicas tão relevantes foram apresentadas tão cedo, então por que motivo parece haver uma estagnação do conhecimento do cosmos até quase ao século XVII? Essencialmente por dois motivos: a reverência excessiva pelos filósofos pitagóricos e aristotélicos – que rejeitavam qualquer das hipóteses acima – e a falta de experimentação. Os pitagóricos consideravam a esfera uma figura perfeita, assim como o círculo, então não concebiam que os planetas se movessem de outra forma que não em círculos perfeitos (Sagan, 1980, p. 218). Foram apenas motivos filosóficos que impediram os gregos de deduzir as leis de Kepler, porque as observações usadas por Kepler, para formular as suas leis do movimento dos corpos celestes, são as de Tycho Brae, ou seja, sem recurso a telescópio (Sagan, 1980, p. 76). A cosmologia de Ptolomeu, com a Terra no centro e órbitas circulares, nunca teria sobrevivido às discrepâncias com as observações se não fosse esta fixação em movimentos circulares.[2]
    O que mudou no século XVI foi a introdução de uma nova forma de validação do conhecimento científico e uma nova maneira de procurar a verdade. Essa alteração está associada a dois nomes: Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650). Francis Bacon, na sua obra Novum Organon, defendia que os cientistas deviam usar uma linguagem rigorosa e compreensível pelas outras pessoas; deviam abordar as investigações de mente aberta e não a tentar provar o que já sabiam. O mais importante de tudo era repetir as suas experiências e observações para poderem estar certos dos resultados. Este é o método de indução, partir de uma observação empírica para tentar alcançar uma regra universal. Quantas mais vezes uma experiência é replicada, mais seguros estamos que a indução está correta. E se essa experiência for replicada vezes suficientes, podemos partir para generalizações – ou teorias científicas – que descreverão o modo como a natureza funciona. Conhecendo as regras que regem o universo, será possível fazer previsões, será possível saber quando ocorrerá um eclipse solar ou a posição de um determinado astro em determinado dia do ano (Bynum, 2018, p. 90).
    Na noite de 10 de novembro de 1619, Descartes teve duas ideias que viriam a culminar na sua obra, Discurso do Método. Primeiro decidiu que, se queria alcançar o verdadeiro conhecimento, teria de ser pelos seus próprios meios. De nada lhe serviriam os ensinamentos de Aristóteles. Segundo, teria de duvidar de tudo e aceitar apenas coisas das quais pudesse estar certo (Bynum, 2018, p. 91). Então o método cartesiano desdobra-se em quatro etapas: não aceitar como verdadeiro algo que a razão não reconhece como tal (evidência); decompor o problema em várias partes (análise); reunir as diferentes partes e ordenar as observações da mais simples para a mais complexa (síntese); finalmente, garantir que nada foi omitido ou deixado de fora (enumeração)[3]. 
    Bacon e Descartes oferecem duas respostas para a pergunta: qual a fonte última do conhecimento científico? Para Bacon é a experiência e observação, por isso é um empirista. Para Descartes é a razão, por isso é um racionalista. 
    Com isto, não queremos dizer que são estes dois pensadores que dão início à revolução científica, eles apenas providenciam os “manuais de boas práticas” da ciência moderna. Respeitando estas práticas, não podemos dizer que as conclusões de Copérnico (1473-1543), na obra Das Revoluções dos Corpos Celestes[4] – o Sol era o centro do universo e estava muito mais afastado das outras estrelas que da Terra –, fossem piores que as dos filósofos clássicos. Em primeiro lugar, a teoria de Copérnico é muito mais elegante na explicação do movimento dos planetas. Se tem alturas em que a posição de Marte parece retroceder, isso é porque este astro se move em volta do Sol e não da Terra. Em segundo lugar, isso é muito mais racional, e de acordo com as observações, que a explicação dos epiciclos de Ptolomeu. O modelo de Copérnico também viria a ser substituído por teorias melhores. Foi exatamente isso que veio a fazer Kepler, acrescentando que o movimento dos planetas é elíptico e não circular, além disso os planetas movem-se a uma velocidade maior quando estão mais perto do Sol (Bynum, 2018, pp. 72-76).
    Galileu Galilei (1564-1642) tem 3 momentos da sua vida que serão verdadeiros divisores de águas na História da Ciência. Na fase inicial dos seus trabalhos, ocupa-se a fazer observações e medições da deslocação dos objetos. Numa das suas experiências mais famosas, fez uma esfera rolar por uma superfície inclinada, percebendo que havia uma relação entre a velocidade da esfera e o tempo decorrido desde que começara a rolar. A velocidade estava relacionada com o quadrado do tempo decorrido, i.e., após 2 segundos, a esfera rolaria 4 vezes mais depressa. O facto de repetir a suas experiências para contornar eventuais falhas humanas ou do equipamento, bem como de privilegiar o concreto em vez do abstrato, faz de Galileu um cientista moderno (Bynum, 2018, pp. 78-79). Também é nesta altura que percebe que se largarmos um objeto com 5 kg e outro com 1 kg, da mesma altura, eles cairão ao mesmo tempo no chão. Não é o peso que determina a aceleração dos objetos, terá de ser outra força. 
    Na segunda fase dos seus trabalhos, Galileu dedica-se a observar o céu com recurso a um instrumento novo, que ele próprio construiu[5], o telescópio. Viu que a Lua não era uma bola perfeita, tinha montanhas e crateras; viu que Júpiter tinha luas, tal como a Terra; e a Via Láctea, que parece uma mancha de luz, não é mais que um conjunto de milhares de estrelas muito distantes. Mas o maior incómodo que Galileu causou foi afirmar que Copérnico estava certo, de facto, e segundo as suas observações, a lua girava em torno da Terra e esta, por sua vez, em volta do Sol, tal como qualquer outro planeta. Publicou estas descobertas na sua obra, Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo, onde colocava Simplício (também em italiano se parece com simplório) a defender a cosmologia clássica e Salviati (nome que sugere sábio ou sensato) a defender a cosmologia de Copérnico. Este último apresenta os melhores argumentos e é óbvio de que lado está Galileu. A igreja pode saber o caminho para o céu, mas não sabe como o céu caminha. É por causa deste livro que será condenado pela igreja. Na retratação dirá que a Terra é o centro imóvel do universo, embora tivesse a certeza do contrário (Bynum, 2018, pp. 80-81).
    Na fase final volta ao problema da queda de objetos. A sua obra, Duas Novas Ciências (1638), é um dos pilares da física moderna, nela se demonstra matematicamente que é possível medir a aceleração dos objetos. Esta obra torna possível calcular a trajetória de objetos atirados para o ar, como balas de canhão, e prever onde iriam cair. De certa maneira, esta obra antecipa os trabalhos de Newton sobre a gravidade (Bynum, 2018, p. 82), o génio de Isaac está em perceber que a mesma força que faz com que os objetos caiam, faz com que os planetas acelerem o seu movimento quando estão mais próximos do Sol.
    Isaac Newton (1642-1727) era antipático, misantropo, irascível e tinha a mania da perseguição, mas era divinamente inteligente. Acordava e ficava horas sentado na cama a pensar, sem sequer se aperceber. Para contornar as limitações da matemática convencional, inventou o cálculo, mas não disse nada a ninguém por 27 anos (Bryson, 2020, p. 56). Como bom cientista, duvidou do princípio que dizia que a luz é branca e homogénea, defendido pelos filósofos da antiguidade e por Descartes. Experimentou fazer passar um raio de luz por um prisma de vidro, se a luz projetada na parede daquela sala fosse um círculo branco, Descartes teria razão, mas na parede apareceu uma faixa de várias cores, portanto a luz era um espectro (Bynum, 2018, p. 105). Também guardou isto para si durante três décadas. A espectroscopia, em meados do século XIX, serviria para fazer aquela coisa que Auguste Comte dizia que seria impossível: conhecer a composição de planetas distantes (Sagan, 1980, p. 144). 
    Durante um jantar, em 1683, Edmund Halley, Christopher Wren e Robert Hooke falavam sobre o movimento dos planetas, sabia-se que tinham órbitas elípticas, mas não se sabia porquê. Wren propôs um prémio de 40 xelins para quem descobrisse. Hooke, que tinha fama de mentiroso, disse que já tinha a resposta, mas não queria tirar aos outros o gozo da descoberta. Halley, obcecado com a ideia, vai até Cambridge para, com o maior descaramento, pedir a ajuda de Newton. Halley é recebido, e quando coloca a pergunta, Newton diz que já tinha feito esse cálculo, mas não conseguia encontrar os papéis. “Isto era espantoso – como se alguém dissesse que tinha encontrado a cura para o cancro, mas não soubesse onde tinha posto a fórmula.” (Bryson, 2020, p. 59)
    Ao concordar em fazer os cálculos de novo, Newton enceta dois anos de trabalho intenso que culminam na sua obra-prima: Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, ou Principia. Este é o ponto mais elevado da revolução científica, é tão avançado que para levar o homem à Lua se utilizou a física de Newton (Globo, 2011). Para fazer funcionar o GPS é preciso Einstein, para ir à Lua basta Newton.
A excessiva reverência aos clássicos também travou o avanço de outras áreas do conhecimento. Quando se começaram a dissecar os primeiros cadáveres, no início do século XIV, e se verificou que eram diferentes das descrições de Galeno em certos aspetos, pensou-se que os corpos tinham mudado, não que o mestre estava errado. Foi Vesálio (1514-64) que iniciou uma verdadeira descoberta do corpo humano, dissecando cadáver atrás de cadáver – experimentando, portanto (Bynum, 2018, p. 65). Na mesma esteira, William Harvey (1578-1657) dissecou numerosos animais vivos[6] para entender como funcionava o coração. Percebeu que havia um sistema de válvulas que fazia com que o sangue circulasse apenas numa direção. Não conseguiu desvendar como o sangue passa das artérias mais pequenas para as veias e volta ao coração, mas os seus trabalhos abriram caminho para outros avanços na área da Biologia e da Medicina (Bynum, 2018, pp. 87-88).
    Na Química, Robert Boyle (1627-91) contrariou a teoria dos 4 elementos – ar, terra, fogo e água –, simplesmente queimando uma vara de madeira. A chama mudava consoante o que era queimado, portanto não era fogo puro, e as cinzas não eram terra. Também defendia que a matéria era composta por vários corpúsculos, com espaço entre eles, quanto maior fosse a pressão, menor esse espaço. Isto implica que, se a água fosse aquecida até evaporar, os mesmos corpúsculos continuariam lá, mas ocupando mais espaço (volume). Se aquecermos a água dentro de um recipiente fechado, a pressão vai aumentar. Depois há duas saídas: se o recipiente tiver pouca resistência, vai ceder para aliviar a pressão[7]; se o recipiente for preparado para aguentar a pressão, a água mantém-se na forma líquida, mesmo a altas temperaturas.[8] A lei de Boyle virá a contribuir para o desenvolvimento da máquina a vapor (Bynum, 2018, p. 101).
    O impacto da revolução científica é tal que, como nos diz Yuval Noah Harari, se um camponês português adormecesse no ano 1000 e acordasse em 1500, o mundo parecer-lhe-ia bastante familiar. Mas se um marinheiro do ano 1500 acordasse nos dias de hoje, o mundo teria mudado de forma tão radical que ele não saberia se estava no céu ou no inferno (Harari, 2013, p. 291). Hoje em dia sabemos coisas que, à primeira vista, só um louco poderia acreditar. Os relógios atómicos provam-nos que o tempo passa mais depressa no cimo de uma montanha que ao nível do mar, e os fósseis de espécies humanas antigas provam-nos que temos um antepassado comum com os macacos. A química prova-nos que, na verdade, toda a vida foi originada na mesma sopa primordial e, por isso, todos os seres vivos são “aparentados”. Tudo isso parece absurdo, mas não há motivo para duvidar porque todas essas teorias foram testadas milhares de vezes, por milhares de cientistas, e não foram falsificadas.


[1] Carl Sagan, em discurso de 1987, apud Jon Fripp et al., Speaking of Science, 2000. Disponível em: https://www.futilitycloset.com/2014/05/06/second-chances-2/ 
[2] Na sua obra, Almagesto, Ptolomeu acrescentou epiciclos às órbitas dos planetas para justificar as observações, mantendo os movimentos circulares e a Terra no centro (Sagan, 1980, p. 69).
[3] Descarte apud Fortes, Alexandra, Gomes, Fátima F. e Fortes, José – “Linhas da História 11, parte 1”. Porto. Areal editores.
[4] Antes de Copérnico a palavra “revolução” referia-se apenas ao movimento de rotação dos corpos celestes. A sua obra teve tal impacto que “revolução” se tornou sinónimo de “grande perturbação” (Rovelli, 2020, p. 72).  
[5] Embora não tenha inventado o telescópio, Galileu construiu o seu próprio e teve a ideia de combinar 2 lentes, obtendo uma ampliação de 15x (Bynum, 2018, p. 79).
[6] Quase sempre animais de sangue frio, porque o coração destes bate muito mais lentamente.
[7] É o que acontece quando salta a tampa de uma panela.
[8] É o que acontece com as botijas de gás, neste caso com um gás diferente.

domingo, 22 de agosto de 2021

Afeganistão

 

Neste momento a maior preocupação da direita são os direitos das mulheres afegãs. Estou com eles, gostava que o Afeganistão caminhasse para uma sociedade mais igualitária, que surgissem algumas heroínas e que elas levassem a cabo uma mudança radical dos costumes daquelas bandas. Até gostava de ouvir algumas delas, daqui a uns 40 anos, a dizer coisas que que não se coadunam de modo nenhum com a sua história de vida. Depois seriam metaforicamente apedrejadas no Twitter por aquelas que lhes devem a liberdade, o que, convenhamos, é melhor que apedrejamento literal. Na semana seguinte o tema seria outro.

Mas nada disso vai acontecer porque, apesar de existirem sim algumas heroínas afegãs, elas não têm meios para operar o milagre. Esperemos que sobrevivam para pelo menos plantar umas sementes de liberdade no deserto afegão, como fez o doutor Nakamura.

Contudo, devo lembrar que os EUA não foram ao Afeganistão entregar a democracia nem defender as mulheres afegãs. Oficialmente foram combater o terrorismo. E falharam. 20 anos e 1 000 000 000 000 de dólares depois, as tropas americanas saem do Afeganistão para o deixar entregue aos mesmos que lá estavam antes. Ou seja, mais valia estar quietinhos.

Fica a lição aos americanos: evitar ao máximo as intervenções em países estrangeiros. Senão depois ainda vos pedem contas sobre defesa de direitos humanos. Não foram lá fazer nada disso, mas também não querem desiludir quem vos tem em tão boa conta.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

TANTOS DESCONTOS!

 

Se há coisa que me deixa perplexo é ouvir pessoas que se queixam que descontam muito dinheiro no ordenado. “Não sei se vale a pena trabalhar aquelas horas-extra, vai tudo para descontos.”; “Vou receber um aumento, mas a maior parte vai para descontos.” Às vezes também me informam que descontam imenso dinheiro, para indiretamente me dizerem que ganham bem. Gosto.

O que ninguém me diz é que está disposto a prescindir do seu direito a baixa médica remunerada, a subsídio de desemprego e à pensão de reforma, para poder poupar os 11% de desconto da segurança social. Aliás, em bom rigor, teria de dizer que está disposto a sustentar os avós que ficariam sem a reforma que já têm. Devia ficar mais barato, certamente.

Os descontos para IRS, que faz todo aquele que ganhe um pouquinho mais que o ordenado mínimo, também são um ultraje já que servem apenas para financiar tudo aquilo que distingue a civilização da selva. Juntamente com o IVA e alguns outros impostos, taxas e taxinhas, o imposto sobre o rendimento serve para pagar escolas, hospitais, polícia, tribunais, obras públicas, etc, etc, – tudo coisas que eu poderia pagar do meu bolso se não descontasse tanto dinheiro no fim do mês.

O que é mais maravilhoso ainda é que eu não ouço ninguém dizer que pagou muito IVA ao comprar o novo telemóvel. Isso é muito engraçado porque o imposto sobre o consumo (IVA) é muito mais injusto que o imposto sobre o rendimento. Se no IRS paga uma taxa mais elevada quem ganha mais, no IVA pagamos todos a mesma taxa. Será que custa mais ao Jorge Jesus (que ganha €4 milhões/ano) pagar 48% de imposto em sede de IRS, ou ao Sr. Benjamim (que ganha €25 mil/ano) que é professor e paga 37%? No IVA o JJ e o Sr. Benjamim pagam o mesmo, deve ser mais justo. (Sim, eu sei que as taxas que apresento são as marginais.)

Reconheço que Portugal tem enormes injustiças na cobrança de impostos, desde logo um nível demasiado elevado de imposto para rendimentos médios, mas isso não é motivo para diabolizar uma coisa que é indispensável a quem queira viver num país digno e decente – um sistema progressivo de redistribuição de rendimento. O sistema não é perfeito, mas tem funções imprescindíveis e pode ser reformado (sim, nem todas as reformas estruturais precisam de ser para privatizar serviços públicos). Por exemplo, a taxa liberatória para rendimentos do capital (28%) é mais baixa que para certos rendimentos do trabalho, o que é moralmente injusto e economicamente estúpido, isso deve ser alterado. Muita coisa deve ser alterada.

Mas imaginemos que se decide que a melhor maneira de tornar o sistema justo é acabar com os malditos descontos no ordenado. Imaginemos um dia na vida do Sr. Benjamim nesse admirável mundo novo.

Às sete da manhã o Sr. Benjamim acorda cheio de energia, toma banho, come os cereais e enfia-se no seu carro novo – comprou-o com o dinheiro que agora lhe sobra – em direção à escola. Pelo caminho, o senhor Benjamim dá-se por satisfeito por ter escolhido um todo-terreno, já que a estrada está cheia de buracos. Uns minutos mais tarde, o senhor Benjamim repara que cada vez há mais carros na estrada, o trânsito é insuportável e os transportes públicos são poucos e caros. “Malditos políticos, o que fazem com o dinheiro dos meus impostos?”, diz o senhor Benjamim, sem se lembrar que votou para acabar com os descontos. Até aqui tudo normal.

Chegado à escola (que agora é privada e, portanto, extremamente bem gerida), o professor recebe a notícia que terão de dispensar a sua colaboração porque a administração precisa cortar custos com pessoal para fazer obras no edifício. Felizmente o senhor Benjamim é um homem prevenido e tinha feito um seguro de desemprego, coisa muito mais barata que os 11% da segurança social, e nos próximos 6 meses manterá algum rendimento.

Uma vez que ficou subitamente com a agenda vazia, o professor Benjamim decide ir visitar os pais. Uma vez em casa dos progenitores, estes lembram-lhe que ainda não lhes deu a mesada este mês, ao contrário do irmão. Os anciãos precisam de medicamentos e estes estão caríssimos desde que o Estado deixou de cobrar IRS - não se percebe. Perante a situação, o professor abstém-se de falar da sua situação laboral, para não inquietar ainda mais os velhotes.

No resto do dia o professor visita umas agências de emprego, vai ao supermercado e ao mediador de seguros. Corre tudo dentro da normalidade e, surpreendentemente, o seguro de desemprego cobria a sua situação de desemprego.

Ao chegar a casa, depara com a porta arrombada e percebe que resta pouca coisa do recheio da casa, felizmente a esposa e os filhos não estavam em casa na hora do assalto. Assim que coloca as ideias no lugar, Benjamim liga à polícia que o informa que, se ninguém está ferido, terão de registar a ocorrência por telefone (contenção de despesa). “Malditos devem estar na esquadra a jogar às cartas”, pensa o professor desempregado.

Foi um belo dia. Olha, ao menos o Benjamim tem muito dinheirinho no bolso. E não precisou de ir ao hospital.

Nesse dia o Jorge Jesus não teve nenhum problema porque vive na zona rica da cidade, juntamente com os outros milionários.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Transferências Imaginárias

Durante aquele curto período do ano em que não há futebol, assistimos à maravilhosa incursão dos jornais desportivos na literatura de fantasia. Como nestes diários só se fala de futebol, e não há futebol, é preciso inventar futebol. Os mais conservadores transferem os melhores jogadores da época passada para os suspeitos do costume, os mais arrojados procuram as estrelas em fim de contrato para anunciar a sua iminente contratação por parte de Porto ou Benfica.

Quando passa tempo suficiente sem um desenlace no negócio imaginário, os jornalistas e os seus amigos comentadores apelidam a sua criação de novela. Diga-se aqui, que algumas novelas são baseadas em histórias verídicas e umas até têm finais felizes, mas o que aborrece é que, aqueles que anunciam estar em posse de informações confidenciais, não parecem ter mais sucesso que os outros a adivinhar o final da novela. Às vezes acertam, mas eu também vou acertar no Euromilhões quando me dedicar a jogar todas as 139 838 160 combinações possíveis.

Não há dúvida que os “especialistas” do futebol são mesmo exaustivos nas suas análises. Dizem-nos qual será o salário bruto e o líquido, se forem muito minuciosos – e são – ainda nos dizem de que forma os jogadores poderão poupar nos impostos. Ninguém se sente à vontade para dizer quanto é que ganha, mas para falar do salário dos outros não faltam candidatos.

Para quem não gosta da versão escrita das novelas do mercado de transferências, há a versão para televisão, que normalmente passa ao fim da tarde nos canais de notícias. Aí os adeptos mais entusiasmados podem ver o seu clube comprar e vender jogadores a ritmo de sapateado. Já aconteceu de um jogador (Lucas Veríssimo) assinar primeiro pelo Benfica, depois estar quase certo no Porto, voltando a ser jogador do Benfica.

Esperemos que o futebol volte depressa porque o meu coração não aguenta tanta emoção!      

terça-feira, 13 de julho de 2021

ANTIGAMENTE NÃO ERA NADA DISTO

 

Desde a espécie humana aprendeu a comunicar que as gerações mais velhas se ocupam, para bem do seu ego, a explicar àqueles que as sucedem que no seu tempo é que era bom. Todos os motivos são bons para ditar a sentença, seja a falta de reverência de um jovem perante o ancião que quer furar a fila do pão, seja o corriqueiro passeio de dois homens de mão dada.

Pois a mim parece-me que nunca, em tempo algum, existiu esse lugar onde são todos irrepreensivelmente bem-educados, estritamente heterossexuais e muitíssimo castos.

Penso que não é segredo para ninguém que na antiguidade a prostituição, a homossexualidade, a poligamia e, às vezes, até o incesto era relativamente bem aceite, dependendo dos lugares, claro. O que pode ser mais surpreendente, para alguns, é que na Idade Média isso também era comum e bem aceite: a Lisboa de 1147 era descrita como lugar de liberdade religiosa e de costumes, lugar onde acorriam os homens mais depravados, “viveiro de toda a licenciosidade e imundície”[1]. Na sociedade andaluz da mesma época também se recusava a castidade, assim como eram toleradas as relações extraconjugais e a homossexualidade. A poligamia e a concubinagem predominavam no seio da aristocracia. Não faltavam poemas de louvor às donzelas, nem aos copeiros que serviam vinho nos banquetes e orgias.[2]

No cristão Portugal do século XIV, o sexo antes do casamento era a regra e, melhor que isso, eram os casamentos a furto (que mais não eram que uniões de facto). Apesar da igreja condenar a prática, acabava por se ver obrigada a validar as uniões, sob pena de perda de fiéis. Para Oliveira Marques, a Idade Média será a época mais fecunda de sempre em adultérios, mesmo que estes fossem severamente punidos pela lei.[3]

Dentro da hipocrisia geral da época, a prostituição era não só tolerada como até legal.

“Por vezes, as leis do tempo distinguem as «mancebas solteiras» das «putas caladas»: as primeiras seriam as que viviam e trabalhavam em bordéis, nas ruas ou nos bairros de prostituição, as segundas talvez as que iam a casa ou recebiam em sua casa, de modo um pouco mais clandestino. […]

As prostitutas eram marginais? Se só puder responder sim ou não, respondo convictamente que não. A prostituição não era proibida. Costuma dizer-se que era tolerada. Eu iria mais longe: era aceite e até tributada. Uma lei de D. Dinis ordena «que daqui em diante que nom levassem das putas o soldo assi como suiam [costumam] levar»; e as prostitutas que fossem trabalhar para a feira da Guarda, pelo S. João, deveriam pagar dois soldos ou um par de pássaros. Uma ocupação fiscalmente tributada é uma ocupação legal e admitida.”[4]    

Para quem ainda não esteja totalmente convencido que dantes era exatamente como agora, aconselho a leitura do curto artigo de Isabel Drummond Braga: “Ser Travesti em Portugal no século XVI”. Nele podemos ver o caso de uma mulher que, de noite, se vestiu de homem e de um homem que, na véspera de Natal, se vestiu de mulher. Ambos foram condenados a multas de dois ou três mil réis.

Para casos mais recentes podem perguntar aos vossos avós, mas eles vão dizer: “Antigamente não havia nada disso”.

Referências

Duarte, L. M. (2011). Marginalidade e Marginais. Em J. (. Mattoso, História da Vida Privada em Portugal - A Idade Média (pp. 170-196). Porto: Temas e Debates.

Marques, J. S. (1987). Nova História de Portugal - Portugal na Crise dos Século XIV e XV. Lisboa: Presença.

Marques, J. S. (1993). Nova História de Portugal - Portugal das Invasões Germânicas à "Reconquista". Lisboa: Presença. 


[1] (Marques, 1993, p. 242)

[2] Idem

[3] (Marques, Nova História de Portugal - Portugal na Crise dos Século XIV e XV, 1987, pp. 486-488)

[4] (Duarte, 2011, pp. 178-179)

PORTUGAL NÃO É RACISTA

 

Não há ninguém em Portugal que nunca tenha ouvido esta frase, ou variantes da mesma. Afinal de contas, fomos o primeiro país do mundo a abolir a escravatura, não é? Não, não é bem isso. Em 1761 é emitido um alvará que declara livres todos os escravos que chegassem a Portugal, mas não liberta os escravos que já estavam no território nem os filhos que estes pudessem vir a ter. Além disso, nas colónias a escravatura continuou pujante por muito tempo, sendo abolida apenas em 1869, 62 anos depois da Inglaterra. E para provar a simpatia do povo lusitano enquanto colonizador, mantivemos os trabalhos forçados nas colónias até ao ano da graça de 1961. Realmente, a nossa colonização era mesmo boazinha, somos uns heróis dos direitos humanos.

“Quer dizer, pode haver algum racismo, mas não é nada como nos Estados Unidos”. Nos Estados Unidos discute-se o racismo e combate-se o racismo, parece-me que ao reconhecer a sua existência eles estão um passo à nossa frente. Talvez seja esse o problema: o povo português tem poucas oportunidades de expressar o seu racismo, há poucos negros em Portugal e vivem sobretudo na grande Lisboa. O resto do país tem de se entreter a inventar histórias sobre chineses canibais, sobre ciganos ladrões e pouco mais. No início do milénio ainda houve a esperança de se poder odiar os ucranianos – mais escolarizados que nós –, mas parece que esses mudaram de ideias em relação a vir para Portugal (o assassinato de Ihor Homeniuk – que obviamente é um caso isolado porque, na maioria dos casos, os espancamentos não resultam em morte – só veio confirmar que é melhor escolher outro destino). Depois houve a hipótese de desprezar os refugiados sírios, mas eles preferiram ir para a Alemanha. Contudo sinto que agora temos uma nova oportunidade com os emigrantes brasileiros, sinto que esses serão perfeitos para nós. Parece que estão um pouco por todo o país e nós já temos rótulos prontos para eles: os homens são preguiçosos e as mulheres dissolutas.

Se calhar, é por haver tão pouco racismo em Portugal que nos dedicamos a pesquisar os casos estrangeiros. Se calhar é por isso que há tanto interesse no cadastro de George Floyd.



O raciocínio é simples de deduzir: “este preto também não devia ser flor que se cheire”. Claro, morre uma pessoa e vamos logo verificar o seu cadastro, a ver se ela merecia estar cá a consumir oxigénio. Seria assim se fosse branco? Não sei dizer porque a polícia não costuma matar brancos.

É curioso que Ihor Homeniuk não tenha suscitado o mesmo interesse de Floyd.



Se calhar é porque o nome é difícil de escrever. Pronto, é compreensível também ninguém vai agora aprender uma língua nova só para acompanhar um caso que devia envergonhar todos os portugueses.

Para terminar, não que o assunto esteja encerrado, ninguém acha, nem que seja ligeiramente, estranho que existam tão poucos deputados não brancos na AR? Há quase meio século que não somos racistas e só tivemos 9 deputados não brancos? Poderíamos fazer o mesmo tipo de observações para as universidades, para a televisão, para as redações dos jornais ou para os quadros de topo das principais empresas portuguesas. Podíamos fazer observações por declaração de rendimentos e por tipo de habitação (aqui se o INE tivesse colaborado com uma pergunta sobre etnia nos censos, seria mais fácil). Podíamos fazer tudo isso para no fim fazer de novo a pergunta: Portugal não é racista?

Pobres

     Eu não tenho nada contra pobres, até tenho amigos que são. O que eu não gosto é de os ver a contar os tostões para pagar a conta do sup...